'O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo'
Alberto Caeiro

Sentidos

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

VIDAVIVIDA




PROCURA-SE



Antunes Ferreira
Colado no muro de jardim público, o cartaz, pequeno, fotocopiado, chamou-me a atenção. Fez, mesmo, com que recordasse os velhos filmes do Cary Grant faroestiano, ainda que com objectivos bastante diferentes. Era um PROCURA-SE, só não acrescentava em subtítulo VIVO OU MORTO. Encimado o pedido lá estava o fácies patibular de um cidadão, caracterizadamente criminoso. Sempre pensei que se procurar um vivo já era uma trabalheira dos diabos, que dizer da busca de um morto? Há, porem, como é sabido, gente para tudo.

Neste caso, a foto era de um cãozito, a dar para o pequenote, com as orelhas espetadas e o rabo mais ou menos erecto. Tinha um ar patusco o bicho, ainda que o preto e branco não lhe fosse muito favorável. Porem, o cabeçalho era o mesmo: PROCURA-SE. Ao invés de referir, como o outro, que se davam $ 5.000 ao achador, pois que o procurado era um contumaz pistoleiro, assassino e assaltante de bancos diversos, bancos de dinheiro, claro, este rezava de outra maneira bem diversa.

E continuava: Cachorrinho sem raça especial – para mim seria rafeiro… - desapareceu no dia 28 de Fevereiro de casa da dona. Já passara, portanto, um tempo bastante sobre a data da ausência do animal, estávamos no final de Agosto, com um calor diabólico, e daí que o letreiro já estivesse bastante fanado. Alguém lhe arrancara um pedaço substantivo, mas, mesmo assim, o rasgão permitia a leitura. E o branco já estava cinzento da poeira e dos escapes dos automóveis.

A minha reforma é muito pequena
Aditava o apelo: Muito dócil, gentil e meigo. Chamado Farrusco e dá pelo nome. Castanho malhado de preto, vivo, encantador. (A fotocópia estava assim complementada). A minha única companhia. Muito grata ficarei a quem o encontrar e mo comunique. Telefone tal, telemóvel tal. Não posso dar alvíssaras porque a minha reforma é muito pequena. E pronto, estava tudo ali escarrapachado, directo e simples. E, sobretudo, sem erros de ortografia, o que, nos tempos que vão correndo…

Um sujeito de bigode um tanto cinéfilo, rudolfovalentinesco, franziu o cenho ao ver-me especado diante do cartaz. Eu conseguia ouvir o trabalho da massa cinzenta que tentava sofridamente classificar-me entre o maluco e o parvo. Obviamente, não fiz qualquer comentário à laboração cerebral do cavalheiro. Comprar guerras não é, definitivamente, meu uso.

Portanto, ignorei-o. Mas, pelo sim, pelo não, retomei a marcha passeio adiante. No entanto, pensando melhor, voltei atrás e tomei nota dos números telefónicos. Tinha uma candidata a um lugar de caixa na superfície de tamanho mastodonte de que sou o Director de Recursos Humanos. E que agora parece que vai abrir também aos domingos. E marcara a hora à candidata. Não gosto de me atrasar.

Caixa e licenciada
Uma jovem de excelente aspecto, um tanto encabulada, mas o facto de estar a ser avaliada justificava-o. A três vagas – e em regime precário – tinham concorrido mais de quatro mil indivíduos, no caso mais indivíduas… Do currículo que enviara constava que era licenciada em Sociologia e que estava a tirar o mestrado. Os tempos correm assim que se lhes há-de fazer?...

Era uma conversa agradável e a moça, culta, começava a convencer-me. O que ela queria era trabalhar, o que me espantou. O pessoal quer emprego com direito a subsídio de férias e décimo terceiro mês, se possível na Função Pública, que ainda se considera o mais seguro, até ver. Esta Leonor, pasme-se, pretendia, apenas, um posto de trabalho.

Foi no meio da entrevista que me lembrei do cartaz esfarrapado. Um momento, por favor. Liguei à central telefónica e disse à Dona Ester para me pôr em linha com os números tal e tal. E, de repente, a minha interlocutora ficou hirta, o semblante carregado de ansiedade. O Senhor Doutor desculpe, não vale a pena tentar essas ligações, os aparelhos estão desligados.

Eram da minha tia Etelvina, reformada, que infelizmente faleceu no dia 3 de Março, não se sabe de quê, o médico no atestado escreveu causas naturais. Senti-me quase congestionado. Sua tia? Sim, Senhor Doutor. Peço-lhe que me releve a pergunta, como obteve esses números? Naturalmente se mo quiser dizer.

Olhe, estavam num cartaz colado num muro e… Obrigado, Senhor Doutor, foi por mor do Farrusco. Uma enorme chatice, isto é, um grande aborrecimento. Telefonaram-lhe, já não sei quem, a informá-la que o bicho tinha sido esmagado por um camião Tir, e que a pessoa que falava tinha assistido ao acidente. Foi-se ele e foi-se ela.

A Leonor foi admitida.

Há uns tempos que não chegava aqui. Tenho andado embrulhdo no novo livreco que pretendo lançar, assim arranje editor que me pague. E lá na Travessa já publiquei uns quantos textículos que dele farão parte. Um abraço ao meu caríssimo Amigo Otário e a promessa de aqui voltar com mais frequência. Se tu me quiseres, óbvio. E os que ainda me lêem persistirem no erro, pois erráre ó mano és...

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