'O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo'
Alberto Caeiro

Sentidos

terça-feira, 16 de março de 2010



AS SAUDADES DO COQUEIRO

Damão – as pedras convivem

Antunes Ferreira
Já imaginaram uma terra onde se pode encontrar dois monumentos politico-militares frente a frente, de ambos os lados de uma estrada? Perguntará qualquer um o que será que o escriba quer dizer, o homem deve estar afectado no cristalino bestunto. Exaro aqui uma declaração prévia: continuo tão maluco como dantes e tenho a certeza do que escrevo. E fiz fotos. E depois, voltará à carga o inquiridor: toda a gente que fez feitos valorosos (valerosos, disse o Camões) tem direito a duas homenagens? Tudo vale a pena se a alma… Poderá ser exagero, porém. Nada disso.



Bom, as coisas são o que são e concretizo. Do lado direito da estrada pela qual se sai de Damão Praça – os bairros estão dentro da antiga fortaleza portuguesa e igrejas são inúmeras – está um monumento branco, primorosamente conservado, impecavelmente limpo, singelo na sua dimensão. Na base da peanha avulta o escudo português e nas lápides que ali existem pode ler-se a homenagem aos heróicos defensores de Dadrá e Nagar Aveli e ao bravo Aniceto do Rosário, subchefe da polícia natural daquele território do então Estado Português da Índia.

Do esquerdo – outro. Também impecavelmente branco, é dedicado aos bravos libertadores de Damão em 1961. Convivem os dois, tranquila e airosamente, ambos são cuidados com desvelo, impecavelmente limpos e aparentemente satisfeitos pela igualdade, em termos monumentais, claro. Cada vez mais tenho a convicção de que, as pedras deles, quando bem tratadas e conservadas – são felizes.

E um pouco mais adiante outro motivo para espanto. Uma lápida colocada por cima da porta: Aqui viveu o poeta Bocage. Juro que nem sequer sabia que o Elmano Sadino estivera por aquelas paragens. Isto tudo instalado dentro das muralhas de uma fortaleza com as armas portuguesas e dísticos gravados dos construtores e outros. A Índia decidiu manter tudo, inclusive a maioria dos nomes das ruas. Nas placas, só mudaram para road.

Chegámos a Daman (é assim em hindi, já era quando os Portugueses chegaram e transformaram o an em ão) provenientes de Pune, após quase sete horas de viagem por estrada. Utilizámos o Volkswagen Passat, com ar condicionado e conduzido pelo Danies. Interessante: os Franco do Carmo têm três desses carros, cada um com um motorista. Este que vem connosco é católico, outro é hindu, o terceiro muçulmano. Curioso. É mais uma cortesia das muitas com que a Isabel nos proporcionou, Foram só mimos. Aqui deixo uma vez mais o nosso obrigado. Os Franco são gente boa.

O território, na época colonial era composto por três zonas. Actualmente são duas. Explico. Eram Damão Grande, Damão Pequeno e Damão Praça, agora há o Moti Daman (Grande) e o Nani Daman (pequeno). O Damão Praça faz parte do Moti. Duas pontes unem-nas. As praias ali são de areia preta, ao invés das goesas, douradas. Eu vi mulheres de sari a retirarem-na para servir na construção civil. Que, mais tarde, origina nas paredes o terrível salitre. Por cá, isso também acontece…

O meu sogro foi ali colocado como director da Delegação Aduaneira, obviamente no tempo dos Portugueses. Na época não havia qualquer ponte e o Carlos Alcântara de Melo tinha direito a escaler com remadores. A Raquel, miúda, foi lá passar com o irmão Luís e a mana Maria Alice duas férias grandes. Durante o ano lectivo morava em Pangim, no bairro das Fontainhas. Lembrava-se perfeitamente da casa da casa paterna, no primeiro andar das instalações aduaneiras.



Tentou encontra-la. E consegui-o ao fim de umas voltas. Na altura era a única e fora construída expressamente para que os meus sogros a habitassem. Porem, todos estes anos que passaram desde então – 1953/54 – resultaram num bairro, com edifícios de andares para habitação e escritórios. Daí a dificuldade da minha caríssima-metade. Mas, lá chegou. Mal a descortinou, pôde constatar que a casa estestava a cair de velha e arruinada.

Muito mais haveria para contar desta verdadeira expedição. Lá voltarei. Entretanto, um exemplo: ficámos no Hotel Cidade De Daman. Vidas. Mas, não posso deixar de referir que ali fomos encontrar dois padres que connosco falaram em Português. O father Andrew Da Costa, André para os amigos, e o já aposentado Antonhy – António - Gonsalves (assim mesmo com s, o ç não existe por lá…) que foi durante quatro anos prior de Carcavelos. Depois, regressou à terra natal. Quando o encontrámos em sua casa estava a preparar um peixe rechiad…



E não é que na conversa entabulada, ele e a minha consorte entraram pelo campo das recordações mútuas? E a propósito não sei de quê, o digno sacerdote referiu uma prima afastada e de outra geração, a Senhora Dona Júlia Noronha. Inenarrável: era tia-avó da Raquel. Mesmo em Damão, mesmo em Damão acontecem coisas destas. Ah, ao correr das teclas, por tais bandas ainda se fala um Português crioulo, próximo do seiscentista. É a chamada língua da casa… Uma festa, amigos, uma verdadeira festa. Claro que já no final da visita, ao abraçar o padre, disse-lhe: até à próxima, primo! Ficou extasiado.

No dia seguinte, antes do nosso regresso a Pune, oferecemos um almoço de peixe fresquíssimo e marisco idem aos dois reverendos. Num simpático restaurante à beira-mar de seu nome… O Pescador.
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Fotos (de cima para baixo):
A velha fortaleza, em muito mau estado;
Monumento português;
Monumento indiano;
Hotel Cidade De Daman e
A Raquel e os padres António e André

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